Desenhos | Auto-retratos
Numa primeira etapa do processo criativo, à semelhança de projetos precedentes, emerge o contato com os materiais por meio da caminhada e da deriva. Nesses percursos exploratórios, os materiais assumem proeminência — cartões, folhas e outros suportes descartados no lixo ou deixados à porta de lojas e armazéns — recolhidos como fragmentos de uma paisagem urbana visível, mas frequentemente negligenciada, marginalizada ou considerada indesejada. Esses materiais constituem a base para a criação. Ademais, utilizo para a demarcação dois lápis oferecidos pelo meu pai, cujo ofício é a marcenaria. Trata-se do tradicional lápis vermelho de forma retangular, amplamente utilizado em fábricas e na construção civil, conhecido como lápis de carpinteiro. Além disso, também recorri, no processo, à máquina de costura, reutilizando linhas e outros materiais, como tinta ou canetas, igualmente encontradas na marcenaria ou em contextos de lixo. Subsequentemente, no meu quarto, enquanto espaço de maior intimidade para mim, as demarcações desvelam numa reflexão sobre a auto-representação. Aqui, o meu corpo inscreve-se nos traços e nas formas. A presença física revela-se, não apenas na ação ou no gesto, mas também nas marcas que se expandem para além dos contornos do próprio corpo. Cada desenho concretiza-se, assim, como uma matriz e extensão dessa presença, traduzindo uma possível captação que oscila entre a corporeidade e a sua ausência — habitando um “entre”. Um corpo nu e a nu. Por fim, a lógica que permeia todos esses elementos é o uso de uma linha contínua e ininterrupta. Este traçado desdobra-se de forma constante e incessante, como um fluxo rítmico e pulsante. A linha, embora finda por necessidade de conclusão, revela no seu percurso uma circularidade potencialmente infinita, que se reinventa a cada volta — uma tensão entre permanência e transformação.
cérebro, olhos, mãos e papel
Que capacidade é essa do corpo que transporta o que observamos e o encerra numa folha de papel? Falo do corpo a transmutar-se em desenho, numa fusão intrincada entre olhos, mãos e papel. É como o desenvolvimento de um músculo mental que de forma misteriosa se prolonga pelo braço, chega à mão e percorre o papel. Transforma-se em movimento e dinâmica. Há pessoas das artes performativas que desenham mesmo antes de usarem o corpo como instrumento. Estas exposições revelam três formas diferentes de usar a musculatura mental, cada uma com a sua identidade e beleza. O desenho é um ato físico que requer tempo, memória, foco, prática, vontade, resistência e liberdade. É como dança. Nesta segunda edição o desenho transforma-se em ação com Flávio Rodrigues, em escultura com Miguel Bonneville e em movimento com Ana Caetano.