EVC: Outros lugares

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  • Estúdios Victor Córdon
  • 01 janeiro 2024 31 dezembro 2024

  • O mundo é a casa do corpo.
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João dos Santos Martins escreveu um texto sobre os EVC a propósito do lançamento da nova temporada.
Enquanto investigava o espólio da coreógrafa Paula Massano no Museu Nacional do Teatro e da Dança, encontrei um dossier intitulado Proposta de Organização da Estrutura Mínima de Suporte de um Workshop. Este documento foi endereçado à Companhia Nacional de Bailado (CNB) um ano após a sua criação, em 1978, como tentativa de integrar um projeto permanente de experimentação coreográfica. O documento começava com uma descrição do que é um workshop, palavra que não circulava na altura: «um workshop é um local onde um grupo de pessoas se reúne à volta de um trabalho comum com o objetivo de, dentro de um dado campo das práticas artísticas (neste caso, a dança), o desenvolver no sentido de descobrir novas formas e, necessariamente, novos conteúdos.»
A proposta de Paula Massano não foi acolhida na CNB. Terá sido discutida? Poderia parecer radical, por um lado, ou ingénua, por outro, num momento em que a Companhia se tinha acabado de formar e procurava constituir-se como corpo de baile de matriz essencialmente clássica. Se a catapultarmos para o presente, esta proposta instiga um questionamento sobre a missão de uma companhia da dança estatal que importa invocar. Se os estatutos da CNB sempre preservaram o convívio entre dança clássica e dança contemporânea, esse equilíbrio sempre pareceu complicado. O que é que um workshop de pesquisa de movimento permanente poderia servir à companhia, em particular, e à dança, em geral?
A história dos Estúdios Victor Córdon (EVC) é indissociável da CNB e surge enquanto um projeto de Luísa Taveira (diretora de 2010 a 2017), com a intenção de contribuir para a recondução da carreira de bailarinos que não estariam no ativo na companhia. Abertos em 2016 com coordenação de Bruno Cochat, os EVC iniciam-se como um «Centro educativo, comunitário e criativo» com aulas de dança para crianças e adultos, masterclasses, oficinas e outros projetos. Em 2017, seria nomeado para o projeto o coreógrafo, ex-bailarino e coordenador de projetos especiais da CNB Rui Lopes Graça, cujo foco de ação, apesar de manter uma preocupação com o reenquadramento profissional dos bailarinos, foi noutra direção.
Caracterizados como uma «plataforma», os Estúdios Victor Córdon são um lugar de prática, pesquisa, experimentação e criação coreográfica sem uma linha estética definida. Sendo um dos poucos lugares em Lisboa com condições próprias para a prática de dança — isto é, estúdio espaçoso com chão de madeira, caixa de ar, linóleo e aquecimento —, os EVC dão um apoio fulcral à comunidade da dança independente através da disponibilização de estúdios dignos para trabalho e ensaios.
Uma das ações centrais é oferecer aulas de dança diárias para profissionais com o custo de três euros. As aulas de dança clássica são dadas geralmente por ex-bailarinos da CNB e do Ballet Gulbenkian, entre outros, garantindo uma transmissão intergeracional. As aulas são frequentadas por uma grande variedade de pessoas, e no mesmo estúdio podem estar: uma bailarina reformada da Ópera de Paris que comprou casa em Lisboa, uma coreógrafa da Nova Dança Portuguesa, um jovem acabado de sair do Conservatório, uma ex-aluna do Forum Dança, uma investigadora do c.e.m., uma amadora que faz doutoramento em sociologia, um bailarino que trabalha no estrangeiro, está a passar férias em Lisboa e tem um baile de vogue à noite, bailarinos que estão entre projetos, que têm uma audição ou que querem «aquecer» antes dos seus ensaios. As aulas de dança contemporânea são orientadas por uma comunidade mais jovem – bailarinos ativos entre os 20 e 40 anos que têm aqui também a oportunidade de partilhar a sua prática com outros. Com um enfoque pedagógico e profissionalizante, os EVC têm ainda tentado criar oportunidades para jovens intérpretes, quer através da colaboração entre escolas de dança, em todo o país, e coreógrafos internacionais, quer estabelecendo colaborações entre escolas artísticas de áreas distintas, como música.
Uma das coisas que os EVC entenderam é que, para ter discursos abrangentes, não podem ser sempre as mesmas pessoas a fazer as coisas. O poder não pode ser piramidal; pelo contrário, tem de ser partilhado, tem de ser um diálogo, tem de ser uma ponte. Parte dos programas dos EVC acontece através de convites a diferentes curadorias, abrindo o espectro de colaborações para fazer o que talvez não estaria ao seu alcance. O que sai para fora não é a voz de um diretor, mas diferentes vozes que expõem e cultivam a diversidade da cena da dança na sua multiplicidade. Esta abertura deve ser vista também como um espaço de responsabilidade para quando, ocupando lugares de poder, as instituições prossigam o seu papel de reparação das injustiças estruturais que continuam a dividir o mundo em dois.
O mundo carece de novas e renovadas instituições. Instituições que nos permitam acreditar nelas, que sejam transparentes, abertas, que tenham espírito, que nos inspirem, que nos representem e que nos façam querer ser representados. Instituições que não sejam máquinas de sugar cabeças e contribuintes, nem plataformas de lançamento para os seus diretores. Os EVC tornaram-se uma casa para muitos. São um lugar onde sabemos que somos bem tratados, onde nos sentimos acolhidos, prezados, respeitados, independentemente do tipo de dança que fazemos. Esta dimensão transversal, que promove diferentes visões, fomenta a comunicação entre pares que muitas vezes não se cruzam, que deixaram de se cruzar ou não se querem cruzar. É um lugar de encontros, tanto de pessoas novas, como de pessoas que admiramos e nunca vemos. Nunca sabemos quem vai atravessar o corredor e isso dá-nos um misto de nervosismo e entusiasmo.
Muitas das ações dos EVC são invisíveis e prendem-se com apoio muscular, psicológico e jurídico ou, por outras palavras, cuidado. Um cuidado que não é protocolar, mas que advém de uma equipa experiente e devota naquilo que é a sua prática diária: a dança. Esta forma de estar prova que as instituições, por mais que sejam criadas por decreto, são feitas por pessoas e são feitas de amor, atenção e dedicação. Se os EVC surgiram como tentativa de solucionar um problema na CNB, tornaram-se uma pequena inspiração para a dança em geral, e uma extensão do que poderia ser um projeto para a dança no país, que, além de um corpo de baile, seria, nas palavras de Paula Massano, um lugar para desenvolver o campo da dança em permanência, na sua forma e no seu conteúdo. Pelas ações dos EVC é possível entender um espectro da dança que se faz, as suas redes, sujeitos, estéticas, preocupações, vontades e necessidades, mas o seu modo de funcionamento permite mais do que isso: permite imaginarmos coletivamente como é possível fazer de uma instituição um outro lugar.
João dos Santos Martins
Janeiro, 2024
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